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domingo, 21 de agosto de 2016

Quando vou de carro não escuto o canto do Bem-te-vi

 Passa do meio-dia e o sol generosamente nos presenteia com seus raios luminosos. A garagem está escura e silenciosa, e guarda no canto esquerdo meu tesouro: minha bicicleta novinha. Coloco meu capacete que parece uma joaninha, desço pela rampa e sou recebida pelo porteiro com um caloroso boa tarde. Quando vou de carro não passa de aceno cordial; talvez o fato de me locomover de bicicleta faça com que eu me aproxime de todas as pessoas, tornando-me assim mais acessível, mais visível, mais igual.

Saio pelo portão e o vento balança meus cabelos. Nada se iguala a esta sensação de liberdade: ganhar a rua sem escudos, sem vidros, sem quase nada que me impeça de sentir o que me rodeia.
A Ipiranga está logo ali abaixo. Pedalo com força para vencer a pequena elevação e logo a descida me leva até suas margens.

Nos primeiros quilômetros quase nada me atrai, talvez a presença ameaçadora dos carros à minha volta me faça não ter olhos à beleza, ao diferente. Já na esquina com o ginásio da brigada, a rua ganha cor. Passo para a ciclovia e a paisagem se abre à minha frente. Observo o semblante dos motoristas que passam... engraçado como a maioria aparenta irritação, impaciência e um olhar perdido. Nenhum deles tem tempo para perceber como nossa cidade ainda é bela.

As margens retificadas no Dilúvio ainda escondem preciosidades. Passo pela tampa de bueiro solta e ela me avisa que começa minha jornada. Mais adiante posso me deliciar com as garças, que teimam em pousar numa espécie de ilha, formada pelo acúmulo de detritos no leito do que chamamos riacho. Ela está ali parada, sem se importar com o fedor que as águas exalam, pena que é assim... A vegetação rasteira que cobre as margens do arroio é encantadora, e algumas árvores debruçam seus galhos em direção ao mesmo, quase que tocando o leito, acenando seus braços verdes para a água morta e poluída. Imagino quem plantou-as e que tipo de construções ali existiam. Talvez os hibiscos da outra margem sejam resquícios de algum jardim onde pessoas se encontravam para beber um refresco. Quem sabe a sombra da bela mangueira não serviu  para abrigar churrascadas ou piqueniques em outros tempos? Consigo imaginar bandos de garotos se divertindo, pendurando-se aos seus galhos para, logo a seguir, ganhar as águas cristalinas e refrescantes de outrora.

Mais adiante observo com tristeza os moradores da margem contrária. Eram bem menos quando comecei a pedalar por ali. Agora improvisaram pequenos abrigos. Imagino quais são as leis que regem tal comunidade. O lixo e o fedor se acumulam mais neste entorno. Restos de objetos, sombrinhas quebradas, comida estragada e até um carrinho de supermercado, tudo vai parar no leito do arroio por ali. É como se a miséria tivesse que deixar sua marca também na paisagem.

Passo pela ponte da João Pessoa, a única no mundo todo que tem árvores plantadas na sua extensão. É bela, com seus detalhes discretos em concreto.

Depois da Ipiranga, entro na cidade baixa. Sua efervescência cultural, sua diversidade de tipos e diversão, tão conhecidos na noite, desaparecem durante o dia, cedendo espaço a escolares, carregadores de água, idosos carregando sacolas. As calçadas não abrigam jovens universitários, mas trabalhadores normais, pessoas que levam o filho à escola e seus cães na petshop... são duas realidades. Quem diria que a vida é tão comum durante o dia. Perto do viaduto,  invariavelmente  sentado sobre a mesma pedra que fica à sombra de um ipê desfolhado, um homem lê seu jornal, alheio ao barulho dos carros que ganham a Perimetral, vindos da Borges. Fico curiosa para saber porque escolheu justo aquele ponto para seu descanso e sesta, talvez a ausência de transeuntes faça daquele lugar o seu refúgio para seu momento de solidão. 

Os carros, ônibus e motos que ameaçam minha integridade física, dão abrigo a pessoas que não dão valor à vida alheia. Buzinam, tiram fininho e cortam a frente sem nenhum pudor ou constrangimento, só o que lhes interessa é chegar ao destino, a qualquer preço. Penso que nossa cultura de deixar tudo para a última hora aperta os horários e faz com que pessoas normais virem bicho quando estão ao volante. Incapazes de raciocinar e de observar a cidade que está viva ao seu redor. Os vidros fechados impedem a aproximação de indesejáveis, mas também os cheiros e os ruídos de nossa cidade.

 Andar de bicicleta  é  uma luta constante contra o perigo, contra o suor, contra as intempéries, mas somente quando pedalo consigo escutar  o canto do Bem-te-vi...