Uma mulher de cabeça arejada
Recentemente li em algum lugar que alguém procurava uma mulher "de cabeça arejada". Devo dizer que olhei-me demoradamente no espelho e resolvi arejar minhas ideias.
Comecei trocando a cor do esmalte. Nenhuma mulher de cabeça arejada fica bem de unhas à francesinha. Não! Mulheres de cabeça arejada usam vermelho intenso como sangue, provocantes e sedutoras ...seguras de sua sexualidade e de seu poder ...
Depois sentei-me na cama e arejei meu corpo. Livrei-me lentamente da camisola fina, da lingerie, da fivela que prendia meus cabelos... de toda e qualquer amarra que pudesse prender um centímetro sequer de minha pele branca.
Respirei fundo e abri minha mente de mulher suburbana.
Primeiro tentei inclinar a cabeça para o lado direito...vai ver assim saía alguma coisa de lá?
Nada...
Para o lado esquerdo???
Nada...
Sacudi-a então, repetidamente: uma, duas, três vezes...
Nada
Girei
Rodei
Nada
Não saiu nada de lá!
Pelo que, presumi: ou estava vazia ou então eu já tinha a cuca arejada de natureza, ou estava com as ideias tão enraizadas que não seria possível tirar nada dali.
De repente saiu da minha cabeça uma coisinha pequena.
Olhei arregalada, assustada... E a tal coisinha também assustou-se!
Peguei uma lente de aumento e observei atentamente: era uma mulherzinha! Muito familiar até. Olhos castanhos como os meus, cabelos longos, eu podia jurar que era uma ...Uma EDA em miniatura!
Nossa! Inacreditável!
Mas ela estava furiosa. Segurava nas pequenas mãos uma infinidade de objetos que eu não consegui identificar à primeira vista. Mas depois, com um olhar mais demorado fui reconhecendo meus fantasmas de infância, meus medos, minhas inseguranças, meus tabus, todos os grilos, as burradas, tudo lá formando uma montanha enorme aos pés da mulherzinha que saíra de dentro de mim...
Olhei para ela, que batia com o pé direito no chão rapidamente e disse, meio titubeante:
-Oi...
Ela virou-se de lado e fingiu que organizava todo o lixo que estava espalhado.
Fiquei olhando para ela, entre surpresa, apavorada e divertida. Sim...era divertido me ver assim, de fora e tão pequenina, carregando tanta tralha inútil.
A mulherzinha começou a retirar as coisas que lhe atrapalhavam o caminho. E cada objeto que apanhava para colocar dentro da sacolinha em forma de coração ela olhava para mim e me perguntava o que deveria fazer com "aquilo".
E começou o desfile:
Primeiro vieram os amores antigos:"Guardo ou coloco fora?" perguntou-me ela... Coloca fora, é claro - respondi- Mas... e aqueles bilhetinhos que recebi quando era menina? Tão bom saber que alguém gostou um dia de mim daquela forma tão pura e desprendida... Melhor guardar. Vai saber quando a gente precisa de algo assim para levantar a estima?
Depois ela me mostrou as dores de amor...Coloca fora, é lógico- quase gritei- quem vai querer lembrar de coisas tristes?....Mas...se eu colocar fora, esquecerei tudo e repetirei meus erros...melhor guardar!
Traições... idem...
Rancores... idem...
Nossa!
Achei que fosse muito mais simples arejar as ideias, mas não era não...
De repente começam a surgir várias bolinhas. Umas bolinhas estranhas, sem nenhuma serventia e que atrapalhavam muito.
Perguntei assustada para a mulherzinha:
- O que é isso?
Ao que ela me respondeu admirada:
- Não sabes? São os Carlos, oras... Estão aí por que permitistes...
- Carlos?
- Sim, os Carlos... Todos os tolos que te fizeram sofrer na vida. Para eles damos o nome de Carlos. Eles ficam rodando por aí, pois marcaram de uma forma ou de outra as tuas ideias.
Olhei assustada para os Carlos. Eram todos mais ou menos iguais. Faziam os mesmos gestos, falavam as mesmas coisas, só mudavam um pouquinho a aparência: uns eram gordos e carecas, outros eram mais magros. Tinha vários Carlos ali!
- Mas por que Carlos? - perguntei.
- Ah querida, podes dar a eles qualquer nome, mas geralmente ficam conhecidos pelo nome de algum canalha que tenha machucado teus sonhos.
O que fazer com os Carlos? Eram muitos e estavam espalhados pela cama. Pensei em pegá-los e atirá-los no lixo, mas depois olhei-os atentamente e fiquei com pena. De alguma forma os Carlos me ajuadaram a crescer e a perceber que a vida é muito bela se conseguirmos nos manter longe deles. Assim, quando conhecemos um número suficiente de Carlos, estamos preparadas para enfrentar tudo!
Olhei com ternura para tudo o que a mulherzinha me mostrava e naquele momento percebi que não precisava arejar minhas ideias, apenas organizá-las de modo a permitir a entrada de mais gente no pedaço.
Junto com a mulherzinha que carrego dentro de mim, organizei cada gavetinha. Algumas coisas ficaram tão pequenas depois da organização, que sumiram por encanto. Os Carlos foram catalogados e organizados em caixinhas transparentes, para que eu nunca corresse o risco de não identificar um exemplar à distância.
Cada coisa teve seu devido fim: os grilos de infância, as pendências familiares, as brigas mal resolvidas... tudo!
Um trabalhão enorme para uma mulherzinha tão pequena.
No final da faxina nos olhamos com cumplicidade. Tomamos um chá com bolinhos e a mulherzinha, cansada, pediu-me que a recolocasse novamente dentro da cabeça.
E foi o que fiz...
Depois deitei-me mansamente sobre meus travesseiros e tive o sono mais reparador que alguém pode desejar.
Acordei leve...
Acordei arejada!
Eda de Maman